segunda-feira, 18 de maio de 2009

Aniversário

Em primeiro lugar devo dizer e reconhecer que estou velho. Para as condições brasileiras sou oficialmente velho. Não quero, porém, entender o ser velho meramente na ótica da biologia. Mesmo assim há no velho uma perda irrefreável do capital vital e um lento colapso dos sentidos. Mas a velhice é muito mais que sua dimensão biológica. É a última etapa da vida, a chance derradeira que a vida nos oferece para continuar a crescer, chegar a madurar e, por fim, acabar de nascer. Se bem repararmos, começamos um dia a nascer mas ainda não acabamos de nascer porque ainda não estamos prontos. Estamos sempre na gênese de nós mesmos, trabalhando, sofrendo, nos alegrando, nos frustrando, estabelecendo relações, amando e criando sentidos para a nossa curta passagem por este pequeno planeta. Vamos nascendo lentamente, em prestações até acabar de nascer. A velhice é a chance última de dar o toque final à estátua que fomos talhando de nós mesmos. A velhice tem suas vantagens. Você não precisa usar mais as máscaras que a vida lhe impõe a cada momento. Pois a vida é como um teatro no qual você é chamado a representar vários papeis. Você veste a máscara de homem, de frade, de padre, de teólogo, de escritor, de conferencista, de antigo torcedor do Canto do Rio e depois do América e de não sei o que mais. Agora como velho você tem o direito e o privilégio de ser você mesmo e de livrar-se das máscaras. Não é um momento fácil porque frequentemente nos identificamos com as máscaras. Mas quando desaparecem, irrompe você mesmo em sua identidade. Então surgem perguntas amedrontadoras: quem é você, finalmente? Que você realmente faz neste mundo? Quais são seus sonhos fundamentais? Que demônios o atormentam? Qual é o seu lugar no desígnio do Mistério? Neste momento, deixamos todos companheiros para trás. Estamos sós com a nossa solidão. E não dá mais para se esconder atrás de máscaras e de papeis. Ego factus sum quaestio magna diz Santo Agostinho: "eu me fiz para mim mesmo, a grande questão". A vida na velhice impõe esta exigência: que nos confrontemos, com temor e tremor, com as questões derradeiras e inadiáveis. É então que de fato podemos madurar, ganhar gravidade e terminar de nascer. É a chance de virarmos sábios. É ilusão pensar que a sabedoria vem com os muitos anos da velhice. Ela não vem. É o espírito, é a coragem com a qual enfrentamos estas questões incontornáveis que nos pode fazer sábios. Então teremos concluído a tarefa de nossa vida. Saímos do palco. Entramos no silêncio. Morremos. Se não carregados de dias pelo menos, carregados de experiência, quem sabe, de sabedoria. Pois cheguei a esta derradeira fase da vida. Não chegaram meu pai que morreu com 54 anos, nem minha mãe que faleceu com 64, nem minha queridíssima irmã Cláudia que se transfigurou aos 33 anos. Eu cheguei e isso é graça de Deus. Por isso, para atender a estas questões, deverei tomar tempo, renunciar a tantas andanças, falar menos, meditar mais e levar avante a viagem mais longa da vida que é rumo ao próprio coração. E então preparar o Grande Encontro. Descer como Cristo até o coração do universo, lá onde o coração da pedra, o coração da flor, o coração de todo vivente, o coração do ser humano e o coração do universo é um só coração. Encontrar-se com Deus, o Coração dos corações, a Fonte originária de todo ser, de toda bondade, de todo amor, de toda ternura e de toda compaixão. Se ser velho é poder vivenciar esse processo, então bem-vinda a velhice, bendita seja a velhice. Não é castigo mas graça sobre graça. Ela nos permite experimentar o que nos diz São Paulo: "Na medida em que definha o homem exterior, se rejuvenece o homem o interior" (2Cor 4,16). Portanto, sou um velho rumo à Fonte da perene juventude que é Deus. A vida não é estruturada para terminar na morte, mas para se transfigurar através da morte. Morremos para viver mais e melhor, para mergulhar na eternidade e encontrar a Última Realidade, feita de amor e misericórdia. Aí saberemos finalmente quem somos e qual é o nosso verdadeiro nome. Nutro o mesmo sentimento que o sábio do Antigo Testamento: "contemplo os dias passados e tenho os olhos voltados para a eternidade." Por fim, alimento dois sonhos, sonhos de um jovem ancião: o primeiro é escrever um livro só para Deus, se possível com o próprio sangue; e o segundo, impossível, mas bem expresso por Herzer, menina de rua e poetisa: "eu só queria nascer de novo, para me ensinar a viver". Mas como isso é irrealizável, só me resta aprender na escola de Deus. Parafraseando Camões, completo: Mais vivera se não fora, para tão longo ideal, tão curta a vida.
(Leonardo Boff, escrito em Dezembro de 2008, por ocasião de seu aniversário de 70 anos.)

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